Quando a empresa na qual a advogada Giselle Blankenstein trabalhava fez uma grande aquisição de drogarias, ela pôde conhecer o fluxo de produção de vários medicamentos – e ficou impressionada com a quantidade de remédios descartados ainda dentro da validade. Em 2010, após já ter saído de seu antigo emprego, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) foi instituída pelo Governo Federal e ela encontrou uma forma de pesquisar sobre o que a tinha incomodado anos atrás, agora relacionando à sua área de trabalho.
Os resultados estão em sua tese de doutorado, Descarte de Medicamentos Industrializados para Uso Humano na Cidade de São Paulo, que ganhou o 1º lugar da Categoria Doutores do 8º Prêmio José Bonifácio de Andrada e Silva, oferecendo, entre outras análises, cinco recomendações para se diminuir o desperdício de medicamentos. São elas: a criação de um indicador de sustentabilidade; um modelo possível de logística reversa de medicamentos no Brasil; uma alternativa para qualificação do descarte por meio de um perfil na rede Instagram (@farmaciadomestica); o reconhecimento de uma intermediação técnica como instrumento da Política Nacional de Resíduos Sólidos e o prevalecimento do discurso social sobre o ambiental na adesão de ações sustentáveis.
Precificação do prejuízo
A PNRS (Lei 12.305/2010) estabelece que a responsabilidade sobre os resíduos deve ser compartilhada entre seus geradores: fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, cidadãos e titulares de serviços de manejo dos resíduos sólidos urbanos. A intenção de Giselle era ir além de entender essa “responsabilidade compartilhada”, e buscar formas de reduzir o descarte desnecessário de remédios. Entretanto, durante o estudo, a advogada percebeu que o que para ela era um enorme desperdício, para a indústria farmacêutica era algo precificado: já se espera que essa quantidade de drogas seja jogada fora. Ao entrar em contato com várias drogarias, nenhuma delas se interessou em contribuir com o estudo.
Ela foi atrás de outras possibilidades por intermédio dos grupos no Facebook, onde encontrou pessoas dispostas a doar ou vender, por preços simbólicos, remédios que possuíam em casa. “É uma prática que pode gerar problema para quem toma esse medicamento, porque algumas substâncias precisam ter uma variação mínima de temperatura e de umidade para continuar com o princípio ativo funcionando”, explica a pesquisadora. Porém, as doações ressaltam a preocupação individual em não desperdiçar um remédio que tem um custo e que pode ajudar outra pessoa. A empatia entre as pessoas contribui, de forma direta, para a redução de resíduos.
Dupla agressão
Todo medicamento, mesmo consumido da forma prescrita pelo médico, gera resíduo, pois o corpo humano não absorve toda a medicação – e uma pequena parte sempre é excretada, parando no meio ambiente. Mesmo a incineração, considerada a forma correta de descarte, causa poluição do ar. Mas quando o remédio é descartado de qualquer forma, no lixo comum, o destino mais próximo é contaminar água, que ainda que tratada, permanece com resquícios de medicamento. Giselle percebeu que o descarte errado de medicamentos constituía um ciclo. “Sai muito mais caro um tratamento médico por uma contaminação de um produto químico, do que efetivamente se preocupar com o prejuízo de estoque que está precificado.”
Em seu trabalho, ela é contundente nas críticas ao modo como esse processo é realizado: “Iniciei a pesquisa por indignação em saber que havia descarte de medicamentos em condição de consumo. O desperdício financeiro e a possibilidade de distribuir a outras pessoas contrariavam-me. No decorrer dos estudos, porém, percebi que havia mais uma violência além do furto (aceito e conhecido como precificação do prejuízo) e da omissão de socorro (justificada pela segurança e qualidade para encobrir a incompetência da gestão): somos fisicamente agredidos pelos químicos que produzimos e incentivamos produzir mediante seu consumo, dentre eles medicamentos para amenizar esta agressão.”
Ao longo de seu estudo, Giselle fez uma pesquisa de campo e uma viagem a Portugal. Ao final, formulou recomendações para dar maior sustentabilidade ao procedimento de descarte de medicamentos industrializados para uso humano.
A pesquisa Descarte de Medicamentos Industrializados para Uso Humano na Cidade de São Paulo, de autoria de Giselle Margareth Pilla Blankenstein, foi realizada no Programa de Pós-Graduação em Saúde Global e Sustentabilidade da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, com orientação do professor Arlindo Philippi Junior.
Mais informações: e-mail gmblankenstein@usp.br, com Giselle Blankenstein.
Fonte: Jornal USP