Com algum atraso, o Brasil até consegue aprovar novas drogas contra o câncer. No entanto, elas não chegam aos pacientes – ou pelo menos não na velocidade com que deveriam após receberem o aval para comercialização no país. Essa é a opinião de especialistas consultados pelo Metrópoles sobre o gargalo de medicamentos para combater tumores liberados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para venda no território nacional, em comparação com o que é aprovado lá fora.
No caso da rede pública, esse tipo de remédio não chega aos pacientes desde 2010. Nos últimos sete anos, os medicamentos oncológicos deixaram de fazer parte da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais da rede pública, o Rename, uma espécie de “cardápio” de drogas à disposição de médicos nas unidades de saúde. Esse documento é atualizado a cada dois anos. Para os tumores, vale o que determinam as diretrizes terapêuticas editadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec).
A comissão do Ministério da Saúde funciona por demanda e analisa a incorporação ou não de protocolos e drogas às diretrizes conforme pedidos. São solicitações de farmacêuticas, sociedades médicas ou secretarias estaduais, por exemplo. A última incorporação em câncer foi feita no ano passado, quando a pasta passou a recomendar o uso do pertuzumabe a pacientes com câncer de mama HER2 positivo avançado, a exemplo do que já acontece em países desenvolvidos e na saúde privada. De acordo com os especialistas, as tais incorporações – quando acontecem – não passam de meras recomendações. O fato de o ministério chancelar o uso de determinada droga para algum diagnóstico não significa que o paciente terá acesso ao medicamento.
“Segundo a própria diretriz, aquilo ali é só uma orientação. Então, de que adianta? Para que serve? No fim das contas, cada centro decide o que pode ou deve oferecer”, pontua Tiago Farina, diretor jurídico da ONG Instituto Oncoguia, voltada a informar pacientes e familiares.
Hoje, o tratamento de câncer na rede pública é feito por meio de repasses mensais do Ministério da Saúde aos hospitais habilitados em oncologia. Independentemente do estabelecido pela diretriz terapêutica, cada centro tem autonomia para oferecer seu próprio cardápio de medicamentos, segundo sua avaliação de prioridade e verba disponível. Por isso, alguns especialistas costumam dizer que não existe um único SUS no Brasil, mas, sim, vários.
“Dependendo do hospital onde o paciente vai cair, ele pode ter a expectativa de vida diferente de outro. Porque, no fundo, cada unidade de saúde tem sua lista de medicamentos”, afirma Farina.
Conforme reforçou o Ministério da Saúde, em nota, a pasta não é responsável pela compra de medicamentos “e, sim, pelo repasse de recursos para que as unidades adquiram o necessário”. Mas, em “casos excepcionais, seja por desabastecimento ou dificuldade de aquisição de mercado”, realiza a compra centralizada de sete rótulos: a talidomida, o mesilato de imatinibe, dasatinibe, cloridrato de nilotinibe, rituximabe, trastuzumabe e da dactinomicina.
Ainda de acordo com a pasta, uma nova padronização compactuada pela Comissão Intergestores Tripartite neste ano prevê que a Rename 2018 volte a incluir o rol de substâncias oncológicas na edição. Pelas estimativas, a lista deste ano deve vir 25% maior, com 1.098 medicamentos, em vez dos 896 da edição anterior. As substâncias devem ainda vir com a indicação de onde podem ser encontradas e qual o órgão responsável pela sua aquisição (União, estados ou municípios).
Das 60 substâncias aprovadas pelo FDA nos EUA nos últimos anos, nenhuma delas passou até agora pelo crivo da Conitec para incorporação – ou sugestão de uso – no SUS. Atualmente, sete substâncias aguardam análise da comissão para entrarem nas diretrizes. Uma delas, o tosilato de sorafenibe, com pedido de aprovação nos casos de carcinoma hepatocelular não ressecável, teve a comercialização concedida pela Anvisa em 2009. “O problema do SUS é o custo das drogas”, avalia Sergio Simon, da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).
“Esses novos medicamentos conseguem boas taxas de cura e sobrevida, mas a pergunta a ser respondida é: a que custo? Essa equação é que, muitas vezes, não fecha.” Sergio Simon, presidente da SBOC.
Uma solução, segundo o oncologista, pode ser remanejar custos em saúde pública, como o abandono de tecnologias ultrapassadas com priorização de novas, mais eficazes.
Para os usuários da rede privada, os medicamentos chegam, mas o atraso prejudica o atendimento. As listas destinadas a reger quais remédios podem ou não serem dados a pacientes, seja via planos de saúde ou no SUS, só são atualizadas a cada dois anos. Em matéria de câncer, essa demora é uma eternidade. No caso dos convênios, o documento responsável por traçar procedimentos e definir as medicações que devem ser cobertas pelas empresas é publicado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
“Se essa lista passar por alteração em janeiro e uma nova droga for aprovada em março, por exemplo, significa que o convênio pode se negar a custear esse tratamento até a nova atualização da lista, daí são mais dois anos”, comenta Maluf. Isso vale especialmente para drogas orais – elas representam grande parte das armas mais modernas lançadas no mercado contra tumores.
A última atualização do rol da ANS passou a vigorar em fevereiro de 2018 e incluiu oito medicamentos orais para cinco diferentes tipos de câncer. Quatro deles constam entre os 60 aprovados nos últimos anos nos Estados Unidos: dabrafenibe, trametinibe (ambos para melanoma), afatinibe (para câncer de pulmão) e ruxolitinibe (mielfibrose).
São eles também os que representarão maior impacto financeiro para as operadoras com a atualização da lista, conforme as contas da Federação Nacional de Saúde Suplementar. Um ano de tratamento com o dabrafenibe, por exemplo, custa em média R$ 500 mil por paciente.
Para compreender o universo da aprovação de medicamentos pelo governo brasileiro, o Metrópoles cruzou dados das novas terapias adotadas nos Estados Unidos, berço de grande parte das pesquisas, nos últimos cinco anos e comparou com o que teve entrada liberada no mesmo período no Brasil. Das 60 novas substâncias ativas (NAS, na sigla em inglês) aprovadas pelo Food and Drug Administration (FDA) entre 2013 e 2017, 32 foram autorizadas no Brasil até agora. Os números americanos são da IQVIA, empresa estrangeira especializada em reunir informações do mercado de remédios. Aqui no Brasil, os dados são da Anvisa.
Significa que apenas metade dos novos remédios passou pelas mãos da agência sanitária brasileira. As drogas tratam 24 diferentes tipos de tumores, a maioria no sangue. A última aprovação no país foi em relação ao avelumabe, um imunoterápico contra um tipo muito raro e agressivo de câncer de pele. A substância recebeu sinal verde da Anvisa no início de junho, seis meses depois dos EUA.
Para os médicos, no entanto, a maior preocupação não é o número. Mais dia, menos dia, argumentam, as drogas acabam chegando. O verdadeiro algoz dos pacientes é o relógio. “O processo ainda é lento, mas a Anvisa tem melhorado bastante a questão do tempo de aprovação”, pondera o oncologista Fernando Maluf, diretor do Instituto Vencer o Câncer e coordenador do Centro de Oncologia do Hospital Santa Lúcia em Brasília.
“O obstáculo não é aprovar”, reforça Sergio Simon, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. “A Anvisa tem uma equipe bastante competente para isso e tem tentado diminuir o tempo de espera. Obstáculo é fazer chegar ao paciente”, diz. Segundo o especialista, a diminuição do prazo de atualização da lista da ANS, bem como a incorporação de drogas que seguem alheias ao documento, é uma das batalhas atuais de entidades médicas junto à saúde suplementar. A pressão é no sentido de que o tempo caia para até 90 dias após a canetada da agência sanitária.
“A atualização a cada dois anos por si só é um absurdo. Fora isso, existe um deadline. Para a lista de 2020, o prazo para protocolar o pedido (de incorporação, para posterior avaliação) é agora em outubro. Imagine então que, se uma nova substância for aprovada em novembro, ela só chegará aos pacientes a partir de 2022.”
Sergio Simon, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica
Fonte: Metrópoles