A grandeza apregoada pelo Juramento de Hipócrates atravessou gerações. Todavia, a velocidade dos tempos modernos, com os avanços tecnológicos e a modernidade galopante, provocou fissuras na pedra filosofal dos ensinamentos da Grécia anterior a Cristo. E se antes as palavras eram proferidas sob a solenidade dos séculos, hoje existem interpretações e interrogações que não jogam por terra as intenções de outra Era, mas despertam os futuros médicos para questões práticas e condizentes com as transformações gigantescas na sociedade. Com um olhar aguçado e crítico, algumas vozes se erguem de uma forma até mesmo dura, como a do médico Drauzio Varella.
Para ele, já não existe sentido em manter o ritual do Juramento nas solenidades de formatura. Algo que ele caracteriza como mera tradição, antiquada, em que os jovens recém-formados apenas o repetem “feito papagaios”. E indaga: “Os advogados, por acaso, juram que defenderão a Justiça? Engenheiros e arquitetos precisam jurar construir casas que não caiam?”
Drauzio Varella não desmerece as “intenções filosóficas louváveis a respeito da ética no relacionamento com as pessoas que nos procuram em momentos de fragilidade física e psicológica”, tampouco “o valor científico de Hipócrates”, a quem credita um raro talento como observador que é capaz de relegar ao nada as explicações religiosas e sobrenaturais para deixar um legado com “descrições precisas de enfermidades desconhecidas na época”, abrindo assim o caminho para o exercício da Medicina calcada na lógica e nas evidências. Por outro lado, enfatiza que a mera repetição das palavras do Juramento, “sem fazer menção ao papel do médico na preservação da saúde e na prevenção de doenças na comunidade é fazer vistas grossas à responsabilidade social inerente à profissão”.
Algo muito mais ligado aos dias e às exigências da atualidade do que “jurar por Apolo, Asclépios, Higeia e Panaceia”. Na prática: Drauzio questiona a falta de sentido em não se utilizar o bisturi, mesmo em se tratando de resolver uma enfermidade como cálculos nos rins. E ainda ataca a visão corporativista expressa na promessa de ensinar gratuitamente a Medicina “aos filhos de nossos professores”.
Em sua opinião, o Juramento é uma peça solene que reafirma o pensamento social “de que somos sacerdotes e de que devemos dedicação total aos que nos procuram, sem manifestarmos preocupação com aspectos materiais, como as condições de trabalho ou a remuneração pelos serviços prestados, para a felicidade de tantos empresários gananciosos”. Demonstrando uma visão engajada, Drauzio Varela afirma que é justamente por causa desse pretenso sacerdócio que os médicos hoje acabam se submetendo a jornadas de trabalho que ele considera um “absurdo medieval”, como os “plantões de 24 horas, seguidos por mais 12 horas de trabalho continuado no dia seguinte, em claro desprezo à própria saúde e colocando em risco a dos doentes atendidos nesses momentos de cansaço extremo”. Uma vez ou outra, é possível, releva, mas ressalta que transformar isto em regra acaba por infringir “o mais elementar dos direitos trabalhistas: o de dormir”.
O objetivo fundamental da Medicina, para ele, é aliviar o sofrimento humano, encarnando “o compromisso diário com os doentes que nos procuram e com a promoção de medidas para melhorar a saúde das comunidades em que atuamos”. Passar noites em claro, acreditar em sacerdócio e jurar algumas palavras soberbas em uma solene colação de grau são de uma esfera sonhadora. Mais importante que isto, ele deixa entrever, é a necessidade de ouvir, saber ouvir os pacientes. Drauzio Varela é enfático: “Temos muito a aprender com os velhos mestres. Hipócrates acreditava que a arte da medicina está em observar. Dizia que a fama de um médico depende mais de sua capacidade de fazer prognósticos do que de fazer diagnósticos. Queria ensinar que ao paciente interessa mais saber o que lhe acontecerá nos dias seguintes do que o nome de sua doença. Explicar claramente a natureza da enfermidade e como agir para enfrentá-la alivia a angústia de estar doente e aumenta a probabilidade de adesão ao tratamento”.